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Veganismo: Uma Revolução Alimentar


A família de Ana Cristina é vegan há cerca de três anos. A jornada não foi fácil, mas a vontade de acabar com o sofrimento animal e de contribuir para um mundo mais sustentável era maior. Não são os únicos. Em 2021, o número de pessoas veganas e vegetarianas em Portugal aumentou 57 por cento face a 2019.



Descasca batatas, raspa cenouras, corta o alho francês. Tudo parece fazer sentido para Ana Cristina que é capaz de cozinhar qualquer coisa. Tacho para ali, fritadeira para acolá. Adiciona legumes, deita temperos, desfaz a proteína. Apressa-se para não deixar as batatas queimar, mexe o que está no tacho para não torrar. Aqui vive-se a tensão de uma cozinha de profissionais. Todos os movimentos e cheiros elevam as expectativas. Será uma lasanha ou um temperado tofu com natas?


Há três anos que não entra nada de origem animal na casa de Ana Cristina. Tudo começou com o seu filho mais velho que sempre teve dificuldades em comer carne. Em adulto, André decidiu fazer uma pausa nos estudos e ir trabalhar para a Holanda. Esta é a viagem que muda tudo. "Mãe, a partir de agora sou vegan”. A estranheza da palavra transformou-se em preocupação. Assim, Cristina iniciou uma investigação intensiva sobre o mundo do veganismo.


Entre artigos científicos, documentários e grandes reflexões, a revolta aumentava. Sentia-se enganada. “Não fazia ideia que o que estava a pôr no prato causava tanto sofrimento”. Quanto mais pesquisava, mais percebia que tornar-se vegetariana nunca seria a solução ideal para si. A mudança passava pela eliminação de qualquer produto de origem animal da sua vida. “O que me leva a isto não é a minha saúde, não é uma mania, não é moda, mas é a minha maneira de ver o sofrimento animal e eu não quero causar sofrimento a ninguém”, explica enquanto envolve os legumes e as natas numa frigideira.


"A partir de amanhã não entra mais nada de origem animal nesta casa”. Foi com estas palavras que Ana Cristina iniciou uma revolução alimentar no lar. A decisão foi tomada durante um jantar com a família. Todos concordaram e se adaptaram rápido. Havia apenas um alimento que o marido não conseguia deixar de comer - o bacalhau. Atualmente, já não lhe sabe bem. “Mudamos a nossa vida e está a correr bem”.


MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES


Segundo a Associação Vegetariana Portuguesa a maioria das pessoas que transitam para uma alimentação de base vegetal têm como principais motivações a eliminação do sofrimento animal, a vontade de ter hábitos alimentares mais saudáveis e o combate às alterações climáticas. Ana Cristina não foge à regra. “Para mim era inconcebível eu ter um estilo de vida que estivesse a prejudicar um ser vivo”.


Proprietária de uma PetShop, Ana Cristina sempre teve um contacto muito próximo com os animais. Durante a sua pesquisa sobre o veganismo deparou-se com vários relatos que expunham as más práticas de determinadas indústrias. “Vi documentários que mexeram muito comigo, a tal ponto que eu quando via só tinha vontade de pegar na pessoa que estava a maltratar o animal e dar-lhe dois safanões”. Quando percebeu que era possível ter uma vida saudável sem consumir produtos de origem animal, não hesitou.


Um estudo conduzido pela Lantern, consultora de estratégia e inovação, concluiu que 1018 pessoas diminuíram ou eliminaram por completo o consumo de produtos de origem animal, em 2021. Atualmente, o total de pessoas veganas e vegetarianas em Portugal é de 260 mil habitantes. Este número cresceu 57 por cento face a 2019. Há cada vez mais portugueses com as mesmas motivações que Ana Cristina e a perspetiva é que os valores continuem a aumentar.



AS PRINCIPAIS DIFICULDADES


No tacho vão-se misturando variadas paletas de cor, resultado dos diferentes alimentos que ali estão a ser cozinhados. Numa outra panela, vai-se juntando um pouco de leite de aveia a farinha. Como este tem um sabor mais adocicado, Cristina vê-se obrigada a retificar, mais tarde, o tempero. A facilidade com que agora cozinha, mostrou-se ser, outrora, uma jornada complicada. “A adaptação foi a minha maior dificuldade. Fui ensinada a fazer aquele determinado tipo de refeição que englobava carne ou peixe”.


Ana Cristina desconhecia produtos processados, como o tofu e a seitan, e não sabia como resolver o problema. Mas, tudo se resume a dar os primeiros passos. Não prescinde dos livros de culinária, que lhe foram e são muito úteis. “Adaptei-me e vi que era muito mais fácil. Não tenho a preocupação de ter que descongelar nada”. A adoção de um estilo de vida com o qual se sente confortável, faz com que não sinta falta de carne, de peixe, ovos, leite e seus derivados. “Todas as refeições podem ser veganizadas e os produtos substituídos”.


Apesar de ter cada vez mais adeptos, o veganismo continua a ser uma realidade distante para muitas pessoas. Há uma estranheza e um conjunto de mal-entendidos que dão origem a vários mitos que circulam e se infiltram na mente das pessoas. Andreia Vieira, nutricionista especializada em alimentação vegetal, desconstrói alguns dos principais mitos, entre estes o défice de vitamina B12, a falta de proteínas e o aumento do apetite.

“Nós é que somos os estranhos, os radicais, os maluquinhos”. Cristina afirma que o preconceito que por vezes sente é motivador de grandes receitas. Faz bolos e leva para a PetShop para que todos os clientes possam provar as suas sobremesas veganas. Através do paladar, Ana Cristina muda mentalidades. “Tenho o maior prazer em ouvir que o bolo está bom, alguns até me pedem a receita”.


Com um aumento da consciencialização de práticas alimentares diversas, tornou-se notória a falta de resposta dos supermercados. Por isso, foram-se acumulando pedidos para que a oferta de produtos fosse alargada. Assim, veganos, vegetarianos, flexitarianos e omnívoros teriam uma ampla ementa para escolherem igualitariamente. Será utópico?


“O DIA DE COMPRAS É UM MARTÍRIO PARA MIM”.


A Associação Vegetariana Portuguesa (AVP) realizou um estudo a nível nacional para entender de que forma é que o setor de retalho alimentar se posiciona em relação a este tipo de produtos. Os retalhistas incluídos neste estudo foram o Aldi, o Auchan, o Continente, o Intermarché, o Lidl, o Minipreço e o Mercadona, sendo que o Pingo Doce se recusou a participar.


O estudo mencionado deu origem ao projeto RankingVeg, elaborado pela AVP e a organização alemã Albert Schweitzer Foundation. O ranking foi desenvolvido com base em três categorias retalhistas: geral, discounters (superfícies de menor dimensão) e supermercados/hipermercados. Os dados relativos à oferta de produtos veganos disponíveis nas lojas foram recolhidos entre maio e junho de 2021.


Os resultados do RankingVeg colocam o Auchan como o hipermercado com mais oferta de produtos veganos. Já na categoria discounter a Aldi é a melhor posicionada. Contudo, a Associação Vegetariana Portuguesa sublinha que “a produção e comercialização de produtos veganos em Portugal encontra-se num estado ainda embrionário, comparativamente com outros países, e que existe espaço para um crescimento da oferta e para uma melhoria da mesma em termos de diversidade, qualidade e preço”.


Ana Cristina faz parte dos 72 por cento de consumidores que consideram a oferta do mercado português como pouco satisfatória. “O dia de compras é um martírio para mim”. Para garantir que leva tudo que precisa para casa, tem de percorrer vários supermercados. “Vou buscar o queijo a um lado, o tofu a outro, as alheiras vegetarianas a outro e depois o resto das mercearias a outro



SER VEGAN É MAIS CARO?


Ser vegan não é necessariamente mais caro. Tal como qualquer refeição, uma alimentação de base vegetal pode ser adaptada à carteira de cada um. “Todos os produtos processados, todos os produtos que vamos ao supermercado comprar e têm o rótulo vegan são mais caros”, explica Ana Cristina. Porém, se as compras forem baseadas em leguminosas, frutas, legumes variados, grãos e sementes, a alimentação vegana pode até sair mais em conta.


“Às vezes faço uma refeição mais económica e outras vezes mais cara”. Cristina pode e gosta de variar. Hoje escolheu fazer tofu com natas, que será servido com pompa e circunstância. Esta é uma receita que adaptou com base no prato tradicional de bacalhau com natas. “Tenho tudo o que tem uma refeição tradicional, não prescindi nem abdiquei de nada”. Mantém os sabores tradicionais adicionando uma pitada da sua criatividade.



OS IMPACTOS AMBIENTAIS


Para Ana Cristina tudo faz sentido quando interligado. Tanto as questões éticas, como as ambientais. “Aqui não usamos nada de origem animal”, referindo-se à comida e à roupa. O que parecem ser simples gestos, contribuem em grande escala para um mundo mais sustentável, como fazer a separação do lixo. Pensativa, considera que só lhe falta uma coisa. Um carro elétrico.


A adoção de uma alimentação de base vegetal poderá ser a solução para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. Elisa Ferreira, Co-fundadora e Diretora Geral do Desafio Vegetariano Portugal, acredita que não é à força que se convence as pessoas. Ao invés, quer inspirar e ajudar, para que a mudança seja feita com facilidade e com sabor. Deste modo, o Desafio convida pessoas a experimentarem uma alimentação de base vegetal durante um mês, com inscrição online e gratuita.


“Não podemos continuar a negar e a camuflar toda uma panóplia de questões éticas e ambientais”, alerta Elisa. O impacto da desflorestação intensiva no planeta está a crescer exponencialmente e tudo se deve às finalidades do comércio, que se baseia em “produzir alimento para milhões de animais criados anualmente para a alimentação humana, terreno e alimento esse que poderia ser usado para consumo humano direto''. Por isso, diminuir o consumo animal e optar por um com base vegetal pode reduzir automaticamente a pegada ecológica.


Para alicerçar os valores que defende, o Desafio Vegetariano Portugal faz ainda pequenas Campanhas de consciencialização e ação. Tudo com um único propósito - informar as pessoas e convidá-las a mudar de alimentação pelo planeta. “O mote da nossa Campanha de Janeiro de 2021 foi Comece a mudar o mundo no prato - nunca foi tão delicioso reduzir a pegada ecológica”. Nos últimos Relatórios da ONU consta que “é praticamente impossível reduzir as temperaturas globais para níveis seguros a menos que o mundo transforme a forma como produz e consome comida e a forma como gere o uso da terra”.


“NÃO VEJO O FUTURO COMO CARNISTA”


Com um aroma inspirador vindo do forno, Ana Cristina faz uma retrospeção rápida. “Não vejo o futuro como carnista”. Mas admite não esperar muito da sua geração. “Sinto que na minha geração há muito medo. As pessoas estão muito agarradas às raízes e não querem mudar.” Com um olhar mais esperançoso em relação ao futuro, Cristina vê uma luz ao fundo do túnel. “Acredito muito nos jovens. Eles estão a mudar o mundo e a fazer coisas boas. Também têm uma sensibilidade muito maior em relação à minha geração. Eles aos bocadinhos vão lá.”


Trimmmmm. Roda-se o botão para cá e o outro para lá. O forno está finalmente desligado, a mesa está posta e a comida feita. Cristina abre o forno e o cheiro a especiarias espalha-se por toda a parte. Ninguém fica indiferente. De seguida, pega numa espátula e divide o temperado tofu com natas. Está pronto a servir!


Cláudia Araújo e Inês Batista




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